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quarta-feira, 13 de outubro de 2010



EU SOU AQUILO QUE SOU...

Há muita gente que quer,
Saber quem é o Luciano.
Eu, em breve, vou dizer,
Quem é este Transmontano.

Quem é este transmontano,
Todos desejam saber.
Eu sou aquilo que sou,
Mais do que isto não sei dizer.

Eu fui aquilo que fui,
Hoje sou aquilo que sou.
Minha vida do passado,
Só saudade me deixou.

Em Nuzedo eu nasci,
Em Nuzedo me criei,
Em Nuzedo aprendi,
Muito daquilo que hoje sei.

Em Nuzedo eu nasci,
Em Nuzedo fui baptizado,
Em Nuzedo eu cresci,
Pelo monte atrás do gado.

Nuzedo, aldeia bela,
Onde brilha a branca neve.
Foi na aldeia de Nuzedo,
Que passei uma infância alegre.

Nuzedo, aldeia bela,
Como ela outra não vi.
Lindas lições para a vida,
Em Nuzedo aprendi.

Nuzedo, aldeia bela,
A mais linda do Universo.
Lhe rendo minha homenagem,
Nas palavras destes versos.

Era um garoto alegre,
Em tempos que já lá vão,
Mas de um momento para o outro,
Fiquei na escuridão.

Meu coração ficou triste,
Entregue à solidão,
Cada vez que eu me lembro,
São facadas que me dão.


O passado deixou marcas,
Profundas dentro de mim.
Golpes, feridas ingratas,
Ternuras sem terem fim.

Na aldeia de Nuzedo,
Fiz más e boas ações.
Das más guardo segredos,
Em todas as confissões.

Ao padre da Freguesia,
Três vezes me confessei.
Os pecados que eu fazia,
Nunca ao padre revelei.

No meu tempo de rapaz,
Subia e descia ladeiras.
Era um rapaz feliz,
Com as minhas brincadeiras.

Era um garoto alegre,
Na casinha de meus pais,
Essa alegria foi breve,
Logo se desfez em ais.

Lagartos e lagartixas
Acabei com mais de um cento.
Atirei com pedras à chuva,
Dei chicotadas ao vento.

Palmilhei campos abertos,
Áridos e pedregosos,
Esmaguei milhares de insetos,
Bicharocos misteriosos.

Pelos caminhos com pó
O trilho dos carros pisei.
Pelas rochas escarpadas,
Trambolhões e quedas dei.


Quando subia ladeiras,
Da burra abaixo caí.
Ao bater com o c.. no chão
A poeira ao ar subia.

Roubei pássaros do ninho.
Matei lebratos na cama.
Hipnotizei cobras no caminho,
Pesquei peixinhos à cana.

Roubei nozes no passal,
Castanhas na cumeeira,
Matei um pombo trocal,
No freixial da ribeira.

Ao romper da madrugada,
Entrava no arvoredo,
Com o meu cão de guarda,
Dos lobos não tinha medo.

Lavrei em terra molhada
Com charruas e arados,
Guardei ovelhas e cabras,
Corri com lobos do gado.

A pobres subi as calças,
A velhas lenha apanhei,
Quer boas e más ações,
Eu sempre lembrá-las-ei.

Dormi em terra lavrada,
Sobre esteiras no chão,
Vi luas de prata fina.
Nas noites quente de verão.

Tomava banho no rio,
Saltava nos meloais,
Joguei o jogo da reca,
Peão, fito e outros mais.

Calcei socos de madeira,
Vesti capotes de saca,
Fui um segundo Constantino,
“Pastor de ovelhas e vacas.”

Quando guardava as vacas,
Lindas canções cantava,
Que nas tardes de domingo,
A minha mãe me ensinava.


Nos carreiros das formigas,
Espalhava migalhas de pão,
Fugi às vezes da escola,
Para não ler a lição.

Subia em cima dos muros.
Tirei pêras nos pereiros,
Fiz moinhos manuais,
Nas presilhas dos lameiros.

Pelos montes apanhei,
Muitas ervas naturais,
A muita gente eu dei,
Essas ervas medicinais.

Pelos campos apanhei,
Muitas ervas aromáticas,
Pelos campos eu passei,
Alegrias e muitas mágoas.

Á sombra dos arvoredos,
No estio eu gozei,
Sentadinho em penedos,
A minha flauta toquei.

Minha flauta velhinha,
Que aqui estou a recordar,
Também a primeira cantiga,
Que eu aprendi a tocar.

No alto da carvalheira,
O negro cuco cantava.
A sua voz altaneira,
Muito bem eu imitava.

Imitava o negro melro,
O mocho e a perdiz,
O corvo e a boubela,
A rola e a codorniz.

Brincava com caracóis,
Meu brinquedo preferido,
Fiz centenas de armadilhas,
Em ferro não aquecido.

Trepava no campanário,
Para o sino ir tocar,
Fazia grande calvário,
Para o badalo puxar.

Com bugalhinhos eu fiz,
Um pequenino rosário.
Ainda hoje eu lembro,
Esse rico relicário.

Sentia febre nas veias,
Rasguei penachos na cama,
Andei descalço e sem meias,
Pisei cascalho e lama.

Saboreei o aroma,
Da viçosa Primavera,
Com ela minha alma sonha,
Voltar atrás aí quem me dera!

No Inverno tinha frio,
No verão sentia calor.
Perdi esse desafio,
Por não ser um bom pastor.

Sou capaz de distinguir,
O melro da cotovia:
O melro canta de noite,
A cotovia de dia.

Conheço arbustos do campo,
O tojo e a trovisca:
A trovisca pelo que amarga,
O tojo pelo que pica.

Também conheço a margaça,
Essa erva venenosa,
Tudo queima, tudo assa
Numa pele fina e mimosa.

Conheço o medronheiro,
O sabugueiro e a nogueira,
O carvalho e o castanheiro,
O freixo e a figueira.

No campo vi crescer trigo,
Vi muito mato arder,
Vi um cigano perdido,
Por amor de uma mulher.

Pelos campos de Vinhais,
Alegre vida eu passei,
Por entre urzes e estevais,
A minha vida deixei.

Pelos campos de Vinhais,
Joguei, perdi a corrida,
Pelo campos eu deixei,
Pedaços da minha vida.

Não me lembrava da História,
Muito menos da Geografia,
Só me vinham à memória
Os jogos do dia-a-dia.

Vi courelas de trigo
E centeio semeado,
Onde o restolho palhudo,
Por meus pés era calcado.

Adorava ver as estrelas
No alto céu a brilhar.
A luz do brilho delas,
Enfeitiçava o meu olhar.

Conheço a madressilva,
Poejo e massanela,
Orégão e a carqueja,
Alfazema e fel da terra.

Ouvia cantar as árvores,
Pelos bicos dos passarinhos,
Que soberbas melodias,
Eu ouvia pelos caminhos!

Deitado à sombra dos freixos,
Sobre tapetes viçosos,
Ouvi o murmúrio das águas,
Em riachos sinuosos.

Com quinze anos de idade,
Um rude golpe sofri,
De um momento para o outro,
A minha vista perdi!

Linda cidade do Porto,
Não posso pensar em ti.
No hospital de São João,
A minha visão perdi!

Linda cidade do Porto,
Não posso em ti pensar.
Quando me vens à lembrança,
Fico quase sempre a chorar.

Com os olhos rasos de água,
Olhei o sol e não o vi.
Imaginem a mágoa,
Que naquele momento senti.

O meu mal já não tem cura,
É bem duro o meu viver,
Vou vivendo na penura,
Penando até morrer.

Pelos campos eu deixei,
Pedaços da minha vida,
Foi no campo que eu encontrei,
Esta coragem emudecida.

Pelos campos de Vinhais,
Perdi minha juventude,
Nunca mais serei pastor,
Porque não tenho saúde.

Nove anos e mais um dia,
Em casa estive fechado,
Ao cabo de nove anos,
Para Lisboa fui levado.

Fui levado para Lisboa,
Para o braille aprender,
Ao cabo de quinze dias,
O braille sabia ler.

Deus tirou-me a vista um dia!
Mas deu-me outra sorte,
Outro ser deu-me este dom de poeta,
Para a minha vida escrever.

Sonhei um sonho tão lindo,
Dos melhores que a vida tem,
Sonhei que era poeta,
Afinal não sou ninguém!

Esse sonho que sonhei,
Era lindo de verdade!
Não era vivido no campo,
Mas numa linda cidade.

Esse sonho que sonhei,
Nos meus tempos de criança,
Não o consegui em Lisboa,
Mas sim no Porto e em Bragança.

Na cidade de Bragança
Fui um estudante falado.
Esse sonho que sonhei,
No meu peito anda guardado.

Andava sempre acompanhado,
Com colegas que eu não via.
Por não ver seu lindo rosto,
Meu coração muito sofria.

Foi graças ao meu trabalho
E à minha força de vontade,
Depois de concluir a escola,
Entrei na Faculdade.

Campo Alegre, campo Alegre,
De ti não me esquecerei!
Na Faculdade de Letras,
O meu curso tirei.

Em Trás-os-Montes nasceu,
Este historiador bacano,
É natural de Nuzedo,
Tem por nome Luciano.

Quem havia de dizer,
Que depois de ser pastor,
Mais tarde havia de ser,
Um futuro historiador!

Passei fome e frio,
Pelo monte atrás do gado.
Meu passado sombrio,
Vai ficar perpetuado.

No campo encontrei lobos,
Na cidade lobos encontrei.
Mas sempre consegui vencer,
Esses lobos com quem lutei.

Eu sempre consegui vencer,
Vitória após vitória,
Eu sempre ouvi dizer,
Dos fracos não reza a História.

O meu passado foi duro,
Cansativo e maroto.
Vou encarar o futuro,
Com um sorriso no rosto.

Com muita fé e esperança,
Na Faculdade entrei.
Para ser aquilo que hoje sou,
Só Deus sabe o que passei.

Este ano acabei,
De me licenciar em História!
É o primeiro doutor,
Que tem a minha parvónia.

Muita gente me elogia!
Eu sei muito bem porquê!
É por eu ver ao longe,
Coisas que ao perto alguém não vê.

Ser cego e conseguir
É um caso de louvar.
Com muita força e trabalho,
Consegui um curso tirar.

Acabei então o curso!
E para, de vez em quando,
Não fazer figura de urso,
Continuo sempre estudando.

Pelos campos de Vinhais,
Guardei as ovelhinhas.
Hoje de novo sou pastor,
De meninos e meninas.

Sou pastor dos meus meninos,
Com quem falo de vez em quando!
Cada vez ficam mais sabidos,
Nas lições que lhe vou dando.

Ao cantar da Primavera,
Tive amores e não amei,
Pensava colher flores,
Só espinhos encontrei.

O destino assim quis,
Que eu fosse historiador,
Em tudo me sinto tão feliz,
Desastrado no amor.

Tenho duas namoradas,
Amiguinhas e leais.
Se da música gosto muito,
Da história muito mais.

Sou a história, sou a música,
Sou a noite e a madrugada,
Eu sou aquilo que sou,
Eu sou tudo e não sou nada.

O vendaval já passou!
Continuo a ser quem era!
O meu coração chorou,
Ao cantar da Primavera.
Ferreira Augusto


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